Os tentáculos do Direito Administrativo

RECEITA

No procedimento administrativo , há três fases distintas: a interpretação, a implementação e a resolução. Estas etapas estão interligadas e são convocadas em várias instâncias e momentos decisivos do procedimento administrativo. Nestes momentos, encontram-se ações discricionárias e obrigações vinculadas. Em qualquer decisão, há uma coexistência de ações discricionárias e obrigações vinculadas. Agora, vamos analisar como estas etapas se podem aplicar à nossa vida quotidiana, através de uma receita culinária de polvo à lagareiro para 4 pessoas.


Ingredientes:

- 1.5kg de polvo;

- 900g de batatas para assar;

- 250ml de azeite;

- 2 cabeças de alho;

- 1 cebola;

- 2 folhas de louro;

- Pimenta branca q.b.;

- Salsa q.b.;

- Sal q.b.



Receita:

Passo 1: Pré-aqueça o forno a 160º C. 

Este primeiro passo é fundamental. Se não pré-aquecermos o forno, não irá estar quente o suficiente na altura em que for necessário para cozinhar o polvo; por isso, temos de o ligar assim que damos início ao processo da receita, de forma a garantir o sucesso da mesma. Se aumentarmos a temperatura, há uma grande probabilidade do polvo ficar queimado; ou, por outro lado, se optarmos por escolher uma temperatura mais baixa, o polvo não irá ficar suficientemente cozinhado. Assim, estamos perante um poder vinculado, que não suscita quaisquer questões interpretativas. Desta forma, o forno deve ser pré-aquecido a 160º C.


Passo 2: Numa panela coza o polvo com cerca de 5 litros de água, 50ml de azeite, uma cabeça de alho e uma cebola com casca.

Quando a receita nos indica que devemos utilizar uma panela para dar início à confecção do alimento, devemos então de facto utilizar uma panela e não uma frigideira ou uma forma de bolo, pois estes utensílios são utilizados conforme o que pretendemos cozinhar. Assim, estamos perante um poder vinculado que não suscita quaisquer questões interpretativas. Desta forma, temos de utilizar uma panela.

A receita indica-nos que devemos cozer o polvo na panela. Este, por si só, é um ato vinculado que não suscita quaisquer questões interpretativas. Desta forma, devemos cozer o polvo na panela, e não bacalhau ou qualquer outro tipo de peixe ou carne. No que respeita às quantidades de polvo utilizadas, embora esteja a utilizar uma receita para 4 pessoas, estas podem comer mais do que o comum e, por isso, devo cozinhar mais do que 1.5 kg de polvo sugeridos nos ingredientes; ou, por outro lado, se forem pessoas que comem menos do que o comum (por exemplo, se estiver a cozinhar para crianças), então não há necessidade de cozer tanta quantidade de polvo. 

Quanto à quantidade de água a utilizar, a receita indica-nos "cerca de 5 litros de água", não sendo precisa quanto às quantidades da mesma. Assim, estamos perante um poder discricionário. Desta forma, podemos utilizar qualquer quantidade de água aproximada dos 5litros, diria que entre os 4.5 litros e os 5.5 litros. 

A receita indica-nos que devemos juntar ao preparado uma cabeça de alho. Embora haja cabeças de alhos maiores do que as outras, os tamanhos não costumam variar muito, pelo que o tamanho da cabeça de alho é indiferente e irrelevante para a receita. Assim, estamos perante um poder vinculado, que não suscita quaisquer questões interpretativas. Desta forma, devemos juntar ao polvo uma cabeça de alho. 

Quanto à cebola com casca, deparamos-nos com a mesma questão relativa ao tamanho da cebola; no entanto, os tamanhos das cebolas variam mais do que os tamanhos das cabeças de alho e, para além disso, a cebola tem um sabor mais intenso do que os alhos. Assim, a expressão "uma cebola" é bastante relativa. Se nos for agradável ao paladar o sabor da cebola, podemos utilizar uma cebola grande; se for o contrário, podemos optar por utilizar uma cebola mais pequena. Assim, estamos perante um poder discricionário. Desta forma, podemos utilizar qualquer cebola, independentemente do seu tamanho, consoante as nossas preferências. 

Por outro lado, a receita refere que deve ser "cebola com casca". Normalmente, a cebola é utilizada sem casca, pelo que se esta receita refere que se deve utilizar também a casca, é porque esta fornece um sabor relevante ao prato. Assim, estamos perante um poder vinculado. A cebola deve ser utilizada com casca. 


Passo 3: Coza durante 40 minutos, até estar tenro. Verifique espetando um garfo nos tentáculos mais grossos. Tempere com sal e deixe-o arrefecer na própria água. 

O tempo de cozedura indicado é de 40 minutos, e deve ser esse o tempo a ter em conta. Se cozinhar durante menos tempo, não ficará suficientemente cozinhado; por outro lado, se cozinhar para além desse tempo, ficará com a típica textura de pastilha elástica, desejada por poucos (ou nenhuns). Por isso, supomos que qualquer pessoa que vá cozinhar esta receita pretenda que o polvo fique "tenro". Assim, estamos perante um poder vinculado. O polvo deve cozinhar durante 40 minutos para ficar com a textura ideal. 

Este ponto da receita suscita uma questão em relação à quantidade de sal a ser utilizada. A quantidade de sal a utilizar é descrita na lista de ingredientes como "q.b." - quanto baste. Esta expressão é utilizada na maior parte das receitas de culinária para que quem as utilize entenda que deve utilizar a quantidade do ingrediente que preferir. Se gostar da comida mais salgada, deve utilizar mais sal; se preferir que a comida tenha um sabor mais "suave", então deve utilizar uma menor quantidade de sal ou, se preferir, nenhum. Assim, estamos perante um poder discricionário. Desta forma, deve juntar-se a quantidade de sal que se entender. 


Passo 4: Separe a cabeça dos tentáculos, reservando-os numa travessa antes de ir ao forno. 

A primeira parte deste passo, relativa à separação da cabeça do polvo aos tentáculos do mesmo, deve ser seguida. Assim, estamos perante um poder vinculado que não suscita quaisquer questões interpretativas.

Assim, os tentáculos devem ser reservados numa travessa antes de ir ao forno. A receita não nos indica de que tamanho deve ser a travessa, ou qual deve ser o material desta. Não temos qualquer informação em relação ao material da travessa, mas podemos concluir que deve ser uma travessa que possa ir ao forno, por exemplo, uma travessa de cerâmica ou de porcelana, uma vez que são as mais indicadas por serem mais resistentes a altas temperaturas. Também não temos qualquer informação relativa ao tamanho da travessa, ficando esse critério entregue à vontade de quem a vai utilizar. Se os tentáculos forem muito grandes, deve ser utilizada uma travessa maior; se forem tentáculos pequenos, pode ser utilizada uma travessa menor. Assim, estamos perante um poder discricionário. Assim, quem cozinhará o polvo pode decidir o material e o tamanho da travessa a utilizar para este passo.


Passo 5: Lave bem as batatas. Leve-as ao forno a 160 ºC, durante 35 minutos. 

O passo "lave bem as batatas" é bastante relativo. Pode-se optar por uma lavagem com água, ou para quem preferir, por uma lavagem com qualquer tipo de desinfetante alimentar. Este é um poder discricionário, ficando ao critério de quem as irá lavar e o que a própria pessoa considera ser uma boa lavagem. 

Na lista de ingredientes, temos a informação de que devemos utilizar batatas para assar. Ora, se são batatas para assar, não posso comprar batatas para fritar ou batatas para fritar cortadas em palitos. Isto alteraria substancialmente o sabor do prato e a ideia das "batatas a murro", o típico acompanhamento do polvo à lagareiro. Assim, estamos perante um poder vinculado que não suscite questões interpretativas. Desta forma, devem ser utilizadas batatas para assar. 

Em relação à quantidade de batatas: pode ser utilizada mais ou menos quantidade de batatas, consoante as preferências. Se as pessoas para quem vou cozinhar gostarem muito de batatas e comerem em grandes quantidades, então devo utilizar mais do que 900g; por outro lado, se não gostarem assim tanto de batatas, ou se não comerem grandes quantidades, posso cozinhar os 900g, ou menos. Assim, estamos perante um poder discricionário. Desta forma, devem ser cozinhadas a quantidade de batatas que se entender. 

A receita refere que as batatas devem ser levadas ao forno a 160 ºC, durante 35 minutos. Para alcançar a consistência de "batatas a murro", pretendidas para esta receita, deve cozinhar-se as batatas à temperatura e tempo indicado. Para além disso, os tentáculos de polvo já estavam a cozinhar no forno a 160 ºC; pelo que, a não ser se tivessem 2 fornos, escolher uma temperatura diferente para as batatas, implicaria a alteração temperatura a que cozinhava o polvo, prejudicando o resto da receita. Assim, estamos perante um poder vinculado. Desta forma, as batatas devem ser levadas ao forno a 160 ºC, durante 35 minutos. 


Passo 6: Junte as batatas aos tentáculos. Aumente a temperatura do forno para 180 ºC. 

Estamos perante um poder vinculado, que não suscita quaisquer questões interpretativas. Devem juntar-se as batatas à travessa dos tentáculos de polvo e aumentar a temperatura do forno para 180 ºC. 


Passo 7: Tempere o polvo e as batatas com azeite, dentes de alho, folhas de louro e pimenta branca. 

Este passo refere-se ao tempero do cozinhado. Deve juntar-se azeite, dentes de alho, folhas de louro e pimenta branca, não indicando quais as quantidades a utilizar de cada um deles. Posto isto, devem utilizar-se as quantidades que se acharem adequadas para os gostos de cada um e, para além disso, é possível não utilizar algum destes temperos e substitui-los por um outro. Assim, estamos perante um poder discricionário. Desta forma, embora sejam indicados temperos pela receita, podem ser utilizados os temperos e as quantidades que se entender de cada um deles.


Passo 8: Leve ao forno. Quando o polvo estiver dourado, está pronto.

A expressão "quando o polvo estiver dourado" é bastante relativa. Os alimentos, quando vão a assar, tomam uma tonalidade dourada desde quando estão prontos até começarem a queimar. Quem está a cozinhar pode considerar que o polvo está a ficar dourado passados 5 minutos depois de ser levado novamente ao forno, ou pode-se considerar que está dourado apenas passados 15 minutos. Ora, este intervalo de tempo é relevante entre o estar pronto ou o estar demasiado cozinhado. Assim, estamos perante um poder discricionário.


Passo 9: Polvilhe a travessa com salsa picada e está pronto a servir. 

Neste passo, encontramo-nos na mesma situação do passo 7 relativa aos temperos. Se ninguém gostar do sabor a salsa, então não se vai juntar salsa, se se gostar junta-se nas quantidades que se acharem adequadas. Assim, estamos perante um poder discricionário. 


Todos os procedimentos do Direito Administrativo possuem aspetos obrigatórios de seguir pela lei e, por conseguinte, instruções específicas; no entanto, estes também possuem aspetos onde há liberdade de escolha e interpretação, desde que não se violem as instruções, isto é, ultrapassar os limites estabelecidos pelo princípio da legalidade. É importante notar que, mesmo nos aspetos onde há alguma liberdade de escolha, não se é completamente livre das escolhas, pois estamos sempre sujeitos às diretrizes estabelecidas pelas instruções, que no Direito Administrativo se traduzem por normas legais e no conceito de direito em geral. 

Segundo a Visão do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, a liberdade é uma característica das pessoas, e a administração não pode ter mais do que uma vontade normativa definida pelo direito e conjunto de leis. Ao interpretar, a administração pública tem necessariamente de fazer escolhas, pois existem várias interpretações e caminhos que levam a resultados diferentes. Por isso, o direito precisa de se basear em escolhas, uma vez que é uma área onde a comunidade jurídica forma a sua vontade de acordo com critérios legais, mas sempre tendo em conta uma dimensão pessoal. 

Assim, como numa receita culinária há várias formas de preparar um prato de acordo com o nosso gosto e preferências, na administração pública há sempre diferentes formas de interpretar a mesma norma e, no final, fazer escolhas referentes à mesma. 


Andreia Miranda, 140122206 - T1.

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