Direito Administrativo no ponto!

 Direito Administrativo no ponto!

A boleima é um dos doces da minha região, e sem dúvida um dos mais saborosos do país. Melhor ainda se torna quando percebo que se pode analisar aos olhos do Direito Administrativo.

Ingredientes:

- 400g de farinha sem fermento;

- 300g de maça descascada e laminada;

- 100g de açúcar amarelo;

- ½ dl de azeite;

- Água q.b.

- Canela em pó e açúcar amarelo para polvilhar q.b.

Agora, passo a passo, à luz dos poderes discricionário e vinculado, analisarei as várias etapas da confeção da boleima.

Passo 1: Pré-aquecer o forno a 200ºC.

            Este é o primeiro passo da receita, que como podemos perceber, é específico. O forno deve ser pré-aquecido à temperatura indicada, não menos nem mais. Podemos considerar que este é o primeiro exemplo de um aspeto vinculado, porque, não sendo cumprido, viola a receita e pode alterar o seu resultado.

Passo 2: Untar um tabuleiro com manteiga e forrá-lo com papel vegetal.

O segundo passo é ainda um passo de preparação para a confeção. As dimensões do tabuleiro não são obrigatórias, e, por isso, ficam ao entendimento do cozinheiro, dependendo da quantidade de pessoas a que se destina a boleima. A quantidade de manteiga também não é especificada, o que nos leva a crer que deve ser, novamente, decidida pelo cozinheiro, que de acordo com o tamanho e características do tabuleiro irá encontrar a quantidade razoável a utilizar. O forro com papel vegetal seguirá a mesma lógica da manteiga. Estes são todos aspetos discricionários por não serem controlados pela receita.

Passo 3: Lavar, retirar o centro da maçã e laminá-la em rodelas.

             Os 300g de maçã utilizados devem ser, ainda numa fase inicial, devidamente lavados, de forma a retirar quaisquer bactérias. A lavagem fica ao critério do cozinheiro, sendo mais ou menos minuciosa, apenas com água, apenas com desinfetante alimentar, os dois, ou com qualquer outro tipo de produto. Este passo representa um ato discricionário, na medida em que, quem está a confecionar a boleima, pode escolher como agir sem que isso fuja ao objetivo da receita. Importa salientar ainda que a quantidade de maçã a utilizar é especificada pela receita e por isso constitui um aspeto vinculado.

            Seguidamente, deve-se retirar o centro da maçã. Este aspeto é vinculado porque, se não for seguido, a receita não terá o mesmo resultado. A parte central da maçã é dura e desagradável, e por isso não pode fazer parte da boleima.

            Finalmente, a maçã deve ser laminada em rodelas. A grossura das rodelas fica ao critério de quem as cozinha, ainda que a expressão “laminada” pressuponha um corte não muito grosso. Voltamos a estar perante um aspeto discricionário, que não irá violar a receita independentemente de como for feito (atendendo a critérios de bom senso).

Passo 4: Aquecer o azeite, vertê-lo sobre a farinha e adicionar açúcar amarelo, batendo tudo muito bem.

            Neste passo estão presentes tanto poderes vinculados como discricionários.

            O azeite deve ser aquecido, mas não se sabe a que temperatura ou durante quanto tempo, sendo este um aspeto discricionário. 

            Já o ato de o verter sobre a farinha é vinculado, porque o cozinheiro não tem qualquer tipo de poder sobre este, limitando-se a seguir as instruções da receita. 

            No fim, adiciona-se o açúcar amarelo, cuja quantidade representa um aspeto vinculado. Todos estes ingredientes devem ser “bem mexidos”, mas nada na receita indica até que ponto. Qual deve ser a consistência a atingir e como deve ser atingida? Não se sabe se se deve mexer com uma batedeira, com uma colher de pau ou com outro utensílio. Este é um aspeto discricionário porque não temos mais indicações na receita de como o realizar.

Passo 5: Adicionar a água necessária aos poucos, de modo a formar uma bola de massa leve e maleável.

            Como referi nos ingredientes, a quantidade de água a adicionar deve ser apenas a necessária para atingir a consistência desejada da massa, neste caso, q.b.. Esta expressão significa “quanto baste”, ou seja, aquela que o cozinheiro considere equilibrada. Este é um poder discricionário porque não está especificado na letra da receita e fica ao critério do cozinheiro.

            Neste passo ainda somos confrontados com o objetivo de alcançar uma massa leve maleável. Este é um aspeto vinculado porque a receita vai depender desta consistência específica, sob pena de ser violada.

Passo 6: Dividir a massa em duas partes iguais, estica-las com um rolo, e forrar o fundo do tabuleiro com uma das partes.

            A divisão da massa deve ser de forma igual, e por isso este é um poder vinculado, porque, se uma parte for significativamente maior que a outra, a finalidade da receita pode ser violada.

            Seguidamente devem ser esticadas ambas as partes, com a ajuda de um rolo de cozinha. Neste passo temos uma componente vinculada e discricionária. A ajuda do rolo para esticar a massa é um aspeto vinculado, porque deve ser feito tal como a receita impõe. Por outro lado, a receita não indica qual deve ser a grossura da massa. Pressupõe-se que deva ficar fina, mas pode variar dependendo do gosto, e por isso é um aspeto discricionário.

            O forro do fundo do tabuleiro com a massa é um aspeto vinculado porque o cozinheiro não pode fugir ao que à letra da receita.

Passo 7: Polvilhar com açúcar amarelo e canela o fundo do tabuleiro e dispor, por cima, as maçãs laminadas.

            Estamos novamente perante um passo discricionário, não havendo qualquer indicação da quantidade de açúcar e canela, apenas q.b., o que nos leva ao raciocínio de que esta ação fica ao critério do cozinheiro, sem risco de violar a receita.

            A disposição das maçãs também pode ser considerada como um aspeto discricionário, tendo em conta que a receita não explica como deve ser realizada. O cozinheiro tem liberdade para decidir a disposição das maçãs, não violando, assim, a receita. Algumas rodelas devem ser guardadas para colocar no topo da boleima, sendo também este um ato discricionário devido à falta de especificação de quantidade. 

            Contudo, as maçãs laminadas devem ser postas por cima do açúcar e da canela, sendo esse um aspeto vinculado.

Passo 8: Cobrir a camada anterior com a massa restante e polvilhá-la novamente com açúcar e canela, colocando as rodelas de maçã que sobraram por cima.

            A cobertura com a massa restante da camada já formada é um aspeto vinculado porque tem de ser feita de acordo com o que a receita diz, correndo o risco de a boleima não ficar como desejada. A massa que fica por cima deve ser também polvilhada com açúcar e canela, sendo este um poder discricionário, seguindo a lógica já referida.

            Novamente estamos perante um poder discricionário no que toca à disposição das maçãs, tendo em conta que o cozinheiro pode escolher como e onde colocar as maçãs, pressupondo que ficam o mais uniforme possível. Ainda assim, no que toca à quantidade das maças acredito que o poder em causa seja vinculado, porque devem ser colocadas as “restantes”, ou seja, exatamente aquelas que sobraram.

Passo 9: Levar ao forno por 30 a 35 minutos.

            Este é um poder discricionário, desde que a cozedura seja dentro do intervalo indicado. A razão pode ser o gosto (boleima mais ou menos cozida), o tipo de forno e a temperatura que pode alcançar, entre outros motivos. Desta forma, esta ação cai na liberdade de escolha do cozinheiro.

Passo 10: Cortar em quadrados e servir.

            Este é um poder novamente discricionário porque não sabemos o tamanho que os quadrados devem ter, como devem ser cortados, como devem ser servidos, etc. Nenhuma destas possíveis variações alterará o fim da receita e por isso não vinculam o cozinheiro a agir de certa forma.

Através desta analogia entre uma receita de culinária e o Direito Administrativo, podemos concluir que, tanto num como noutro, existe um processo de interpretação. Cada passo da receita deve ser interpretado à luz do resultado final que se pretende atingir, havendo etapas em que o cozinheiro tem mais ou menos liberdade (nomeadamente nos aspetos discricionários). No Direito Administrativo existem igualmente normas, que se podem comparar à receita, na medida em que representam diretrizes e sugerem um determinado caminho a seguir. Ainda assim, o processo interpretativo também afeta as normas e muitas delas são seguidas de forma ligeiramente diferente consoante as interpretações.
Contudo, quer seja um cozinheiro ou um membro da Administração Pública, existe um muro que não deve ser ultrapassado: a violação da receita/norma.

Leonor Travassos, nº 140122058, T1

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